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Julho
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Exame mental para diagnóstico de transtornos
A inexistência de testes laboratoriais para o diagnóstico de transtornos psiquiátricos é um fator que retarda, em alguns casos, a detecção da enfermidade, comprometendo o tratamento do paciente. Tradicionalmente, o diagnóstico é obtido por meio de uma avaliação psiquiátrica, em que o médico reconhece os sinais e os sintomas relatados pelo paciente e os classifica como depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar ou de outra condição mental adversa. O sucesso dessa estratégia, subjetiva e sujeita a erros, depende em grande medida da experiência clínica do psiquiatra, da capacidade do paciente em reconhecer e expressar seus sintomas ou ainda do relato de familiares. Agora, um grupo de cientistas brasileiros avançou na tentativa de criar um exame laboratorial com o sangue do paciente para auxiliar o diagnóstico de esquizofrenia e transtorno bipolar, doenças psiquiátricas que, somadas, atingem 81 milhões de pessoas no planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Até hoje, não existe nenhum teste para a identificação desses transtornos aprovado por autoridades da saúde, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o órgão correlato norte-americano Food and Drug Administration (FDA).
O estudo foi liderado pela química Ljubica Tasic, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp), em colaboração com pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e resultou no depósito de uma patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). A metodologia é baseada na análise do conjunto de metabólitos (compostos resultantes das reações enzimáticas do metabolismo) contidos na fração líquida do sangue, o soro. Mais de 2 mil metabólitos, entre lipídios, aminoácidos, proteínas, ácidos e compostos aromáticos, compõem o soro.
“Um aspecto inovador do trabalho foi recorrer à metabolômica, uma plataforma recente que vem sendo aplicada em vários campos da medicina. No lugar de procurarmos alguns biomarcadores específicos associados a doenças psiquiátricas, analisamos um vasto conjunto de metabólitos presentes no sangue e fizemos um perfil metabolômico do paciente”, afirma a professora da Unifesp Elisa Brietzke, psiquiatra especializada em alterações metabólicas causadas por enfermidades mentais e uma das criadoras do método. “Recorremos a essa metodologia porque achamos ser improvável que apenas uma ou um pequeno grupo de substâncias no sangue possa identificar de forma confiável a presença de transtornos mentais complexos como a esquizofrenia e o transtorno bipolar.”
Técnica combinada
Cento e cinquenta voluntários participaram do estudo, sendo um terço deles pessoas saudáveis (o grupo-controle), um terço portadores de esquizofrenia e um terço, de transtorno bipolar – ou seja, os pesquisadores partiram de uma amostra bem caracterizada e definida de pessoas. Dessa forma, seria possível traçar o perfil metabolômico dos voluntários e associá-lo a cada um dos três grupos. A avaliação psiquiátrica dos voluntários foi feita pela equipe da Unifesp, coordenada por Elisa. Em seguida, amostras de sangue foram colhidas e preparadas para a análise pelo grupo de Mirian Akemi Hayashi, professora do Departamento de Farmacologia da Unifesp, e enviadas para a Unicamp. Para analisar o sangue dos voluntários e construir o perfil metabolômico, a equipe de Campinas associou a técnica de ressonância magnética nuclear de hidrogênio-1 (RMN de 1H) à quimiometria, uma abordagem estatística e matemática aplicada a problemas de origem química.
Na RMN de 1H, após a aplicação de uma radiofrequência na amostra de sangue que se encontra sob efeito de um campo magnético homogêneo e forte, os átomos de hidrogênio de moléculas presentes no soro emitem sinais, a partir dos quais se obtém um espectro. “Esse espectro contém sinais dos átomos de hidrogênio de todas as moléculas presentes no soro sanguíneo cuja concentração permite a sua detecção”, explica Ljubica. O passo seguinte foi recorrer à quimiometria para relacionar a qual metabólito correspondia o deslocamento químico que permitia separar os grupos analisados – o foco dos pesquisadores recaiu sobre aqueles que apresentaram maior alteração no perfil dos pacientes com esquizofrenia ou transtorno bipolar em relação aos das pessoas saudáveis. Essa etapa do trabalho teve a participação do químico Ronei Jesus Poppi, professor do IQ-Unicamp. Por fim, foram determinados os principais metabólitos alterados e identificou-se de qual grupo (saudáveis, esquizofrênicos ou com transtorno bipolar) a amostra de sangue testada pertencia.
“O desenvolvimento dessa primeira fase do projeto foi concluída com êxito, uma vez que as análises planejadas foram finalizadas”, comenta Ljubica. “Podemos afirmar que, entre os três grupos dos indivíduos estudados, foram detectadas diferenças entre vários aminoácidos, compostos aromáticos, D-glicose, ácidos, creatina e cadeias alifáticas de lipídios. Há alguns metabólitos que foram detectados em pacientes esquizofrênicos e outros somente em portadores de transtorno bipolar.”
Apesar dos bons resultados obtidos, a pesquisadora alerta que o teste não está pronto para uso. “O desenvolvimento de um kit diagnóstico é a perspectiva futura dos nossos estudos. Os metabólitos-alvo para esquizofrenia e transtorno bipolar deverão ser ainda validados e quantificados por outras técnicas.” Para isso, Ljubica planeja propor métodos químicos ou bioquímicos para análise qualitativa e quantitativa e que possam ser usados num teste de fácil detecção. A pesquisadora estima que serão necessários de cinco a 10 anos de pesquisa e aprimoramento, com financiamento da iniciativa privada, para o teste chegar ao mercado. A Agência de Inovação Inova Unicamp já está trabalhando no licenciamento da tecnologia.
Para o psiquiatra Luis Augusto Paim Rohde, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciativas como a do grupo de pesquisadores da Unicamp e Unifesp são bem-vindas e devem ser estimuladas. “A busca por marcadores biológicos para doenças psiquiátricas é extremamente importante”, diz ele. “Mas a pesquisa precisa ser colocada em perspectiva. Trata-se de um estudo com amostragens pequenas, divididas em pacientes portadores de casos graves com um grupo-controle com desenvolvimento típico. Precisamos de auxílio no diagnóstico diferencial de casos com sintomas complexos e que muitas vezes fazem parte de diferentes diagnósticos.” Segundo Rohde, único brasileiro a participar da versão mais recente do manual de diagnósticos psiquiátricos norte-americanos, o DSM-5, “a direção que está sendo seguida é excelente, mas os resultados são preliminares”.
Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/01/10/exame-mental/
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